O médico por trás da máscara
[Elaine de Souza, ACI-Famesp | especial histórias da pandemia]Estamos no escritório da Assessoria de Imprensa da Famesp – gestora do Hospital Estadual de Bauru (HEB). Peço uma sugestão de entrevistado para ser personagem do Jornal da Cidade de Bauru num especial de dia das mães (leia, aqui). Sou informada de que o diretor de assistência, que estará escalado para visita médica no domingo na ala de tratamento de Covid-19, iria cozinhar na véspera um bolo e um almoço para sua esposa. Essas indicações de personagens são rotineiras em nosso trabalho. O médico chega, de máscara, para saber do que se trata, quando seria a entrevista etc. Sugiro que a gente tenha uma conversa prévia. Sempre faço isso para entender detalhes da história da “personagem” e, então, oferecer à equipe de reportagem um gancho mais interessante para a matéria. Mal sabia que aqueles minutos de conversa se alongariam e abalariam o meu dia, como ocorreu.
O médico por trás da máscara é Paulo Henrique Rangel Malaquias, intensivista, cardiologista e nutrólogo, que completou 50 anos no último dia 10 de maio. Mineiro, de Pouso Alegre, ele trabalha no Hospital Estadual de Bauru desde 2008, quando veio para a cidade. Com 25 anos de exercício da profissão e toda a responsabilidade do cargo que ocupa – o de diretor de assistência desse hospital que hoje é referência para casos de Covid-19 – o doutor Paulo estava sempre apressado, assinando algum documento, orientando algum profissional, tomando decisões... Por conta disso, em seis anos e pouco de assessoria, eu nunca tinha conversado com ele com mais tempo, olho no olho. E naquela tarde de 8 de maio de 2020, nos difíceis dias de pandemia de coronavírus, só nos restava o olho no olho durante a conversa, afinal a máscara já era acessório obrigatório – inclusive nas áreas administrativas, nas ruas, nos transportes públicos.
No começo da conversa, ele conta que no final de dezembro de 2019, logo quando retornou das férias, ouvia com atenção as notícias de que o coronavírus já estava na europa. “Eu me lembro de ter conversado com o Lucas (médico infectologista da equipe do HEB) e de ter perguntado se ia chegar aqui. Ele disse: - Vai! E a gente começou a estudar o vírus e a entender como ele estava se comportando nos outros países. Mas a ficha caiu mesmo quando o primeiro caso foi confirmado em São Paulo [anunciado em 26 de fevereiro pelo Ministério da Saúde. Tratava-se de um homem de 61 anos, que deu entrada no Hospital Israelita Albert Einstein, na capital paulista, dia 25/2, com histórico de viagem para Itália, região da Lombardia]. Aí tivemos certeza de que chegaria aqui”, relembra.
E o psicológico do médico, como fica?
“No início foi muito difícil. Nós, médicos, temos o ímpeto de atender o paciente numa urgência, independentemente de estarmos paramentados, às vezes até se expondo a riscos. Na verdade, não fomos treinados a pensar na gente, na nossa segurança. E agora temos de ficar o tempo todo condicionados a isso”, relata. Essa foi uma das lições dessa pandemia. Médicos não estão imunes. E precisam aprender a cuidar do outro e de si mesmos.
Pergunto se, em algum momento, ele teve medo?
“Muito. E temos ainda. A gente vê colegas acometidos, vê pacientes jovens em estado grave... E sente uma angústia por pensar que a gente tem de voltar pra casa em segurança para a nossa família”. Aí vem o primeiro nó na garganta.
Um nó que chega cortante quando cada um de nós pensa em nossa família.
Nessa hora, a gente é só um ser humano olhando para outro ser humano. Medo, insegurança e um amor pulsante por aqueles que esperam por nós, em casa.
Pai de um menino de 4 anos, Paulo conta que ao chegar em casa, depois do banho e de todos os cuidados de higiene, deixa o cansaço de lado e aproveita a companhia do filho e da esposa. “Aí eu brinco de cavalinho, me jogo no chão com ele... E no dia seguinte voltamos para os nossos pacientes. É o caminho que a gente escolheu. A profissão que Deus nos deu”. Quando tem um tempo, ele também gosta de entrar na cozinha e cozinhar para a família.
Vivendo dias exaustivos ao lado da equipe do HEB, o médico reconhece que em 25 anos de profissão nunca tinha imaginado viver algo parecido. Ele também tem uma certeza: é uma mudança de paradigma. “Você repensa toda a sua vida...”.
O que você acha que vai mudar, a partir de agora? Pergunto.
“Primeiro, penso que, a partir de agora, ao entrar no Hospital a gente se dá conta das futilidades a que dávamos importância lá fora, antes de tudo. Os pacientes ali, sem possibilidade de nenhum contato com o familiar. Muitas vezes, o nosso boletim é o elo que une eles. Em conversas com os familiares, nesses dias em que estão todos angustiados, a gente percebe também o quanto esse contato direto, cercado de confiança e de empatia, tinha se perdido”, reflete.
No HEB, desde 15 de abril, foi implantada a visita virtual, que possibilita aos familiares o contato com os pacientes por meio de chamadas de vídeos em tablets adquiridos pelo Hospital. Também são feitos boletins médicos diários por meio de uma plataforma eletrônica. Mas, segundo Paulo, os familiares querem saber mais e querem ter notícias de cada evolução do paciente e, para isso, contam com informações dos médicos.
E aí vem o segundo nó na garganta. Saber que tem um familiar do outro lado dependendo de você, das notícias sobre o paciente, é algo que abala a rotina e exige adaptações.
“Eles querem saber se o pai, a mãe, o filho, alimentou-se direito, se tomou banho, se já conseguiu sentar na cama... Nessa fase, a gente tem sido o porta-voz do paciente. É uma readaptação porque nesse cenário a nossa responsabilidade é muito maior do que numa conversa presencial com a família. Nós estamos ali no lugar da família. Vendo, sentindo e fazendo o melhor possível para suprir essa ausência, afinal o que eles querem de informação é o mesmo que qualquer um de nós gostaria de ter se estivesse naquele lugar”, relata o médico.
“Muitas vezes a angústia deles é grande e todo o esforço que é feito para esclarecer as dúvidas e atender expectativas é recompensado quando conseguimos tirar um paciente do estado crítico, quando ele evolui e sai da UTI para um leito de enfermaria e, especialmente, quando ele vai pra casa, para o seio da família. Essa é nossa maior recompensa. Felizmente, temos visto essas altas com alegria”, destaca.
E aí vem mais uma lição dessa pandemia: “tenho falado com colegas médicos, a gente sempre precisa se imaginar naquela cama, no lugar do paciente, para entender um pouco das dificuldades de quem está lá, como paciente, de quem está lá como profissional da saúde e também de quem está do lado de fora, aguardando por notícias”.
E uma certeza: “a gente precisava ter essa parada para recuperar alguns valores e sentimentos. O contato, o amor, o carinho, tudo isso se fez mais urgente agora. Quem está vivendo isso nunca mais vai ser o mesmo. Vai enxergar a vida de outro jeito. Às vezes, a situação está crítica, porque temos de pensar em todos os pacientes – não só naqueles com covid-19 –, organizar os plantões, a assistência... E tem dia que um colega está mais angustiado e a gente vai dar uma força. Tem dia que é a gente que está mal... E o colega vem falar algo que acolhe, essa tem sido nossa rotina”.
Sobre o trabalho das equipes, especialmente das UTIs, diante do medo e da insegurança, Paulo reforça que a união, o estudo - porque essa doença exige que a gente estude muito – e o empenho de cada um tem feito a diferença na linha de frente do tratamento da covid-19. “E digo que todo mundo vai ter desespero em algum momento, e ninguém deve ter medo desse sentimento porque ele é legítimo nesse sistema de caos. Temos de estar preparados. Por isso, quanto mais união dentro da equipe, especialmente dentro de uma UTI, que é como uma família, mais fortes ficaremos. Só assim vamos passar com menos danos possíveis por essa fase”.
E você sabe quem será o doutor Paulo, a partir de agora?
E vem o terceiro nó na garganta: “uma pessoa mais apaixonada pela família e mais apaixonada pelo trabalho, porque, apesar de todas as dificuldades, o que a gente faz é um sacerdócio. A gente está aqui porque Deus nos colocou aqui e mostrou que é esse o caminho: amor ao próximo, fraternidade e caridade sempre”, conclui.
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- Você também pode conferir o depoimento desse e de outros profissionais gravados em vídeo por nossa equipe. Estão disponíveis no Canal da Famesp no YouTube.
Você tem alguém para nos indicar como entrevistado? Alguém que queira nos contar o que tem visto, sentido e feito na linha de frente do tratamento de covid-19? Mande sua sugestão para imprensa@famesp.org.br